A História das Polícias no Brasil: Entre o Controle da Ordem e a Construção de Direitos

Introdução

Este é o terceiro ensaio de uma sequência de artigos que, por iniciativa da Associação dos Policiais do Congresso Nacional, visa esclarecer e aprofundar questões históricas e jurídicas envolvidas na existência da Polícia Legislativa, a fim de munir os cidadãos e cidadãs de informações relevantes acerca dessa Polícia.

A Polícia Legislativa é fruto de uma evolução histórica do papel constitucional das polícias, que, como veremos, ainda não é suficientemente claro como merece ser, apesar  de já vir prevista, formalmente, no texto da Constituição, desde 1824.

Ocorre que, como desafio que, até os dias atuais, é imposto às polícias – legislativas ou não – a trajetória institucional das polícias no Brasil revela uma profunda tensão entre os princípios republicanos de garantia de direitos e a prática concreta de manutenção da ordem social.

Este artigo busca reconstituir criticamente a trajetória histórica das polícias no Brasil, com especial atenção para os marcos institucionais e constitucionais que moldaram a sua configuração, bem como os desafios que se impõem à construção de uma segurança pública democrática que busca se aproximar dos cidadãos.

As polícias têm papéis fundamentais no nosso país: a manutenção da ordem pública, proteção dos cidadãos e do patrimônio, além da investigação e repressão de crimes. Mas, para que toda a população entenda esse papel, inclusive reconhecendo o papel constitucional das polícias, entre elas, a polícia legislativa, as suas funções constitucionais devem estar plenamente alinhadas às necessidades populacionais.

Preocupada e atenta com as consequências de uma população que não conhece, de perto, todas as suas polícias, a Associação dos Policiais do Congresso Nacional vem publicando, periodicamente, artigos que tratam das questões mais essenciais sobre as carreiras policiais, com foco na carreira do Policial Legislativo.

Longe de ser apenas uma questão administrativa, a história das polícias e da Polícia Legislativa é também a história do próprio Estado brasileiro e das formas pelas quais o poder político moldou e foi moldado pelos instrumentos de vigilância.

Desde as primeiras manifestações do poder, ainda no período colonial, até as complexas estruturas federativas da atualidade, as corporações policiais foram, majoritariamente, agentes de contenção fundamentais para a manutenção do Estado Democrático, sendo fundamental dar voz e espaço a essas corporações.

1. As Primeiras Configurações do Poder Policial

Antes da institucionalização das forças policiais como conhecemos hoje, o Brasil colônia já contava com mecanismos de controle social exercidos por tropas militares e agentes locais. No século XVIII, em especial, a função policial ainda não era especializada. “Forças militares tinham atividade de patrulhamento no espaço urbano e exerciam também atividade de controle de estradas e do problema dos escravos fugidos” (BRETAS; ROSEMBERG, 2013, p. 167).

Foi apenas com a vinda da família real portuguesa ao Brasil, em 1808, que se deu o primeiro marco institucional da história das polícias no país: a criação da Intendência Geral de Polícia da Corte e do Estado do Brasil, nos moldes da existente em Lisboa. Este órgão tinha atribuições administrativas e judiciais, atuando na vigilância da população e no controle dos costumes, bem como na repressão a crimes e desordens urbanas. Em 1809, foi criada também a Guarda Real de Polícia, com funções ostensivas, organizando o policiamento armado da cidade do Rio de Janeiro.

Esses órgãos “carregavam em seu nome a concepção de polícia, nos obrigando a refletir sobre os conteúdos históricos e os nexos dessas definições” (Bretas e Rosemberg, 2013, p. 167). A concepção de polícia, então, não se restringia à segurança ou à repressão criminal, mas abrangia uma ideia ampla de governança urbana e disciplinamento social, típica da racionalidade moderna europeia do século XVIII.

2. A Constituição dos Sistemas Policiais

A organização das forças policiais no Brasil seguiu um percurso próprio, profundamente afetado pela dinâmica federativa e pelas transformações políticas do século XIX. Durante o Império, o controle das polícias foi descentralizado e entregue às províncias, o que contribuiu para a instrumentalização dessas corporações por oligarquias locais, muitas vezes  convertendo-as em milícias políticas ao serviço dos interesses dos chefes regionais.

Como destacam Bretas e Rosemberg (2013), o modelo policial brasileiro, especialmente nas primeiras décadas do século XIX, foi obrigado a seguir uma lógica de “controle da pobreza urbana, repressão a tentativas de organização e manifestação, mas também repressão a práticas culturais, festas, cultos, diversões” (p. 166), consolidando-se como agente disciplinador de uma ordem urbana.

A partir da República (1889), consolidou-se a divisão entre as polícias civis e militares estaduais, mantendo-se a lógica de subordinação das polícias militares ao comando dos governadores e, indiretamente, ao Exército. Essa fragmentação e duplicidade funcional permanecem até hoje como uma das maiores dificuldades à construção de uma política de segurança pública articulada e democrática.

3. Segurança Pública nas Constituições Brasileiras

A trajetória das polícias também pode ser lida à luz da evolução das constituições brasileiras, que revelam não apenas mudanças jurídicas, mas principalmente conceituais e institucionais sobre a segurança e o papel das forças policiais.

Na Constituição de 1934, o termo utilizado era “segurança interna”, expressão carregada de sentido militar, voltada ao controle de subversões e à repressão de inimigos políticos. Já a Constituição de 1937, no contexto do Estado Novo, introduz pela primeira vez a expressão “segurança pública”, ainda que de forma imprecisa. O artigo 16, inciso V, atribuía à União a competência de garantir “o bem-estar, a ordem, a tranquilidade e a segurança públicas, quando o exigir a necessidade de uma regulamentação uniforme” — uma formulação genérica que não definia o escopo das ações ou dos atores responsáveis.

Conforme Lima, Bueno e Mingardi (2016), “o conceito criado pela CF de 1937 parece não ter conseguido se institucionalizar e não teve força para mudar, mesmo após o Estado Novo, as estruturas que organizavam as polícias estaduais” (p. 55).

A Constituição de 1967, por sua vez, promulgada sob o regime militar, reforçou a lógica de segurança “interna”, restaurando competências militares e consolidando o papel das polícias militares como braços auxiliares do Exército.

A Constituição de 1988 representa, sem dúvida, um marco normativo ao inaugurar um capítulo específico sobre a segurança “pública”, expressando um movimento de redemocratização e de proteção aos direitos fundamentais. No entanto, como reconhecem Lima et al., “nossa atual Constituição não define o que vem a ser segurança pública, apenas delimita quais organizações pertencem a esse campo” (2016, p. 56).

Além disso, a Constituição de 1988 manteve, inicialmente, o modelo bifurcado de polícia, distribuindo competências de forma rígida, sem mecanismos eficazes de cooperação interinstitucional. Também se omitiu quanto à regulação das guardas municipais e das polícias legislativas, o que gerou, desnecessariamente, disputas jurídicas e lacunas operacionais em relação ao seu papel na segurança pública.

4. Estrutura Federativa e Fragmentação Policial

O modelo federativo brasileiro, tal como delineado na Constituição de 1988, ampliou a complexidade da segurança pública ao fragmentar competências entre União, estados e municípios. A ausência de regulamentação efetiva do artigo 23 e dos parágrafos 7º e 8º do artigo 144 agrava o quadro de descoordenação.

Como apontam Lima, Bueno e Mingardi, “a ausência de regras que regulamentem as funções e o relacionamento das polícias federais e estaduais, e mesmo das polícias civis e militares, produz no Brasil um quadro de diversos ordenamentos para a solução de problemas similares” (2016, p. 54).

Essa fragmentação produz efeitos perversos e injustos com as corporações: sobreposição de funções, disputas de competência, ausência de protocolos integrados, investimentos desiguais e culturas organizacionais autônomas, muitas vezes conflitantes.

Sabe-se que, infelizmente, o golpe militar de 1964 consolidou um modelo autoritário e militarizado de segurança, no qual as forças policiais foram convertidas em instrumentos centrais da repressão política. Nesse contexto, a doutrina de segurança nacional redefiniu os inimigos do Estado não mais como delinquentes comuns, mas como “subversivos”, internos à sociedade brasileira, o que justificava o uso da força como mecanismo de preservação da ordem institucional.

A Constituição de 1967 formalizou essa lógica, subordinando as polícias militares ao Exército e aprofundando o fosso entre polícia e cidadania. As polícias civis foram igualmente cooptadas, integrando-se ao sistema de controle político por meio da atuação dos Departamentos de Ordem Política e Social (DOPS).

Com a transição democrática iniciada nos anos 1980, consolidada na Constituição de 1988, esperava-se uma profunda reforma dos sistemas de segurança pública. A nova Constituição, ao tratar da segurança como direito fundamental do cidadão e dever do Estado, consagrou um paradigma de proteção e garantia de direitos. No entanto, as mudanças foram, em grande medida, normativas.

Apesar de prever a existência de um sistema de segurança pública (art. 144), a Constituição não tratou da integração entre os diferentes órgãos, tampouco enfrentou o modelo dual e hierarquizado das polícias. Além disso, manteve as polícias militares subordinadas ao poder dos governadores, mas com estrutura militar e formação orientada por diretrizes castrenses, sem adequação ao regime democrático.

Lima, Bueno e Mingardi (2016) assinalam que “a Constituição de 1988 optou por uma definição do campo da segurança pública com base em atores institucionais, e não em funções” (p. 56), o que significa que não se estruturou um sistema de proteção cidadã, mas apenas se listaram os órgãos que compõem a segurança pública, sem lhes atribuir papéis cooperativos e claros.

O texto constitucional de 1988 inaugurou uma nova fase institucional, entretanto, enquanto a segurança pública for pensada como guerra e não como política social, os resultados seguirão sendo os mesmos: uma população que desconhece a história de sua polícia e polícias que lutam pelo reconhecimento de suas carreiras.

Uma nova história das polícias no Brasil, sobretudo da polícia legislativa e da segurança pública institucional, apenas será possível quando sua função vier expressa no texto constitucional, isto é, quando houver reconhecimento da Constituição à sua altura, bem como quando esse reconhecimento estiver plenamente alinhado aos demais direitos e garantias que a própria Constituição consagra.

Bárbara Nunes Ferreira Bueno[1]

Aylon Estrela Neto[2]


Referências Bibliográficas

  • BRETAS, Marcos Luiz; ROSEMBERG, André. A história da polícia no Brasil: balanço e perspectivas. Topoi, v. 14, n. 26, jan./jul. 2013, p. 162-173.
  • LIMA, Renato Sérgio de; BUENO, Samira; MINGARDI, Guaracy. Estado, polícias e segurança pública no Brasil. Fundação Konrad Adenauer, 2016.

[1] Advogada, Professora e Pesquisadora. Mestra e Doutora em Direito Constitucional. Pós-Graduada em Direito Público. Pós-Graduada em Direito Digital. Convidada pela Associação dos Policiais do Congresso Nacional para publicar artigos que tratem das Polícias Legislativas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal.

[2] Sócio-Fundador do Estrela Neto Advogados; Possui graduação em Direito pelo Centro Universitário de Brasília (2013), pós-graduado em Direito Público pela Fundação Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (2016), formação complementar em Direito Digital pelo Insper (2017) e Master of Law em Direito Empresarial pelo Ceu Law School/SP (2023). Tem experiência na área de Direito há mais de 10 anos, com ênfase em Direito Cível, Empresarial e Digital.

Publicado em: 15/05/25

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